04 janeiro 2010

Suriname: uma terra sem lei e sem ética

Na semana passada fomos brindados com algo mais do que Veuve Cliquot e Kir Royal. Uma torrente de violência atingiu em cheio os brasileiros que viviam no Suriname, e tudo por causa de uma richa envolvendo um arruaceiro costumaz e um garimpeiro que provavelmente se achava muito esperto. O arruaceiro de que falo é o surinamês Wilson Apensa e o brasileiro se chama Adilson de Oliveira. Na véspera do Natal ele arrumou três brigas em Albina, cidade que fica a 150 quilômetros da capital, Paramaribo. Acostumado à violência (colecionava passagens pela polícia por furto, assalto e lesão corporal), saiu-se vitorioso de todas as contendas. Por volta das 20 horas, Apensa iniciou o quarto tumulto. Aparentando estar drogado, entrou na churrasca-ria Espetinho, onde um grupo de garimpeiros brasileiros estava reunido. Aproximou-se de um deles, agarrou-o pela camisa e deu-lhe um soco no rosto. O brasileiro agredido reagiu (vai ver foi movido pelo genuíno espírito nacionalista que diz que um filho teu não foge a luta). Num gesto súbito, Adilson puxou uma faca que trazia na cintura e cravou-a no coração do surinamês. Em seguida, fugiu. A morte de Apensa, pertencente ao grupo étnico dos maroons (descendentes de escravos africanos), causou uma correria no vilarejo. Comerciantes fecharam seus estabelecimentos e os garimpeiros se refugiaram no hotel onde estavam hospedados. Todos sabiam do risco de retaliação por causa do comportamento tribal dos integrantes da etnia à qual Apensa pertencia.

Conhecidos no país por seu primitivismo, os maroons costumam vingar a morte de membros do grupo com uma reação descomunal. Pelo menos 300 deles, armados com porretes, facões, machados e pedras, tomaram as ruas de Albina. Supermercados foram saqueados e o hotel onde estavam os brasileiros foi invadido. Os hóspedes foram espancados e as dependências, incendiadas. Um posto de combustíveis ficou em cinzas e seis automóveis e um caminhão foram consumidos pelas chamas. Mais de uma centena de brasileiros foi atacada. Alguns apanharam de porrete, muitos foram apedrejados. Os maroons não pouparam nem as mulheres. Uma delas, grávida, perdeu o bebê depois de ter a barriga perfurada por um facão. Outras dezenove afirmam ter sido estupradas pela turba enfurecida. Dois casos foram confirmados pela polícia local. Os demais estão sob investigação.

A maranhense E., de 34 anos, estava nesse grupo. Ela relatou a revista VEJA o terror que viveu: "São uns animais. Deram tapas no meu rosto, arrancaram minha roupa, me beijaram à força e morderam meus seios". Uau! Um relato digno dos "120 Dias de Sodoma", do Marquês de Sade ou da "História de O", de Pauline Reage. Mas, voltando aos fatos: a brasileira estava em um dos hoteis que foi invadido pelos maroons e ao ouvir a gritaria do lado fora, trancou-se em seu quarto. Infelizmente, esse maroons são criativos e tem um impeto destrutivo daqueles. Quando viram que não conseguiria 'desentocar' todos os brasileiros, decidiram atear fogo no prédio. Quando E. percebeu que o edifício ardia em chamas, passou a gritar por ajuda. Os maroons a ouviram e arrombaram a porta. Ela foi estuprada e atirada nua para fora do prédio. Mas a bárbarie não acabou por aí, a selvageria se estendeu pela madrugada e deixou um saldo oficial de 25 feridos graves - um deles ainda corre o risco de ter o braço amputado. "Só não morri porque me joguei no rio no meio da noite e nadei até sair da cidade", conta o paraense Reginaldo Serra, um garimpeiro de 30 anos. Hoje, há 18 000 brasileiros vivendo no Suriname. São, basicamente, prostitutas e garimpeiros que tentam a sorte em lavras de ouro mais produtivas que as existentes do lado de cá da fronteira. Depois da selvageria em Albina, a FAB mobilizou-se para retirar os brasileiros que querem sair do Suriname.

Os maroons formam o terceiro grupo étnico mais numeroso daquele país - só perdem para os imigrantes indianos e javaneses. Eles descendem de escravos negros que nos séculos XVII e XVIII fugiram de fazendas na região litorânea e se refugiaram nas florestas do interior. Ali retomaram aspectos da cultura africana e passaram a viver como seminômades e coletores. Como o interior não era habitado, tornaram-se senhores das florestas. Hoje, os maroons controlam 80% do território do país. Por terem se organizado à margem do estado surinamês, recusam-se a obedecer às leis nacionais. Alimentam a ideia de que são donos da terra desbravada por seus ancestrais e usam a força bruta para rechaçar aqueles que julgam invasores. "Essa gente vive como há 200 anos", diz o delegado brasileiro José Roberto da Hora, adido da Polícia Federal na embaixada brasileira em Paramaribo. Nas estradas sob seu domínio, eles cobram pedágio de 50 dólares por carro que passa. Os principais alvos são os garimpeiros brasileiros. Qaulquer semelhança com o que acontece na Reserva Raposa Serra do Sol ou nos territórios cedidos aos quilombolas brasileiros não é mera coenscidência. Essa gente realmente se organiza à margem da sociedade e isso não tem absoluta nada a ver com as idéias daquele matusquela do Rhosseau! Não foi a sociedade que os levou a pensar e agir dessa forma, muito pelo contrário. Foi a sociedade que as impediu de agirem assim durante todos esses anos. Eu sempre achei essa coisa de que o ser humano nasce bom, bonito e rosado uma grande piada. A idéia de que os maus são dotados de uma espécie de influência negativa que leva os bons a se corromperem é absurda. Afinal, se todos nascem bons, quem são os maus? O que diabos os corrompeu? O divino espiríto santo?

O comportamento bizarro dos maroons faz parte do quadro de completo desgoverno que assola o Suriname. O país foi o último do continente a se tornar independente, há apenas 34 anos, e, ainda assim, a contragosto. Os surinameses não queriam romper os laços com a antiga metrópole, a Holanda. Para convecê-los da própria independência, o país ofereceu um acordo comercial vantajoso. Eles pediram, e levaram, livre acesso ao porto de Roterdã, o maior da Europa. As mercadorias que saem do Suriname, ou as que são enviadas para lá, não podem ser vistoriadas pelas autoridades holandesas. Com isso, o país tornou-se um paraíso do crime organizado. Contrabandistas e narcotraficantes utilizam a conexão Paramaribo-Roterdã em escala industrial (a revista VEJA mostrou, em janeiro de 2007, na reportagem "O Paraguai do norte", como funcionam essas conexões). Para completar o quadro, 10% do território surinamês, o Triângulo New River, está sob litígio internacional (é reivindicado pela Guiana). Um acordo foi feito entre os dois países e nenhum deles pode policiar a zona. É uma terra entregue à própria sorte. Segundo a Polícia Federal brasileira, a área está infestada de gângsteres russos e chineses. Além disso, guerrilheiros colombianos das Farc vão até lá para trocar cocaína por munição vinda da Líbia. Esse triângulo barra-pesada faz fronteira com o Brasil, mas felizmente é isolado por uma cadeia de montanhas conhecida como Serra do Tumucumaque. Comparadas ao Suriname, enfim, as favelas cariocas são seguras como Zurique.

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