29 janeiro 2010

Ainda o Haiti

Acabo de ler um texto escrito pelo professor e pesquisador da Unicamp, Omar Ribeiro de Thomaz, sobre o Haiti. Meu primeiro contato com a obra do professor Thomaz, ocorreu após o seu regresso de Inhambane, província de Moçambique. Lá, o professor acompanhou um grupo de pessoas levadas pela Frelimo - Frente de Libertação de Moçambique - para trabalhar em campos de reeducação. Na ocasião, o professor Thomaz prestou uma excelente contribuição a sociedade ao descrever os horrores dos campos de reeducação moçambiquenhos. Infelizmente, o mesmo não pode ser dito da sua descrição do desastre que assolou o Haiti.

Em seu texto, o professor Thomaz afirma que "a missão das Nações Unidas foi incapaz de ir além de resgatar seus próprios mortos e feridos [...] e o que vemos são haitianos ajudando haitianos". Um retrato bem diferente daquele que os correspondentes internacionais, das mais diferentes agências de jornalismo, nos ajudaram a pintar. Diego Escosteguy, um dos correspondentes brasileiros no Haiti, afirma que a população está vivendo em "estado natural", condição que teria prevalecido na humanidade antes do estabelecimento das formas mais rudimentares de organização social. Gangues armadas saqueiam, roubam, estupram e matam. Grupos de haitianos desabrigados pelo terremoto se entrelaçam nas calçadas formando enormes tapetes humanos, de modo a passar a noite com um mínimo de segurança. É um quadro aterrador mesmo para um país que, antes de ser arrasado pelo terremoto, já era um dos mais abalados pelo banditismo e pela miséria. Thomas Hobbes teria agora em Porto Príncipe a chance de ver a realidade de um mundo sem lei em que a vida humana é "solitária, miserável, sórdida, brutal e curta". A catástrofe natural fez emergir no Haiti o que há de pior na espécie humana e endossou as palavras do filósofo inglês que disse que "o homem é o lobo do próprio homem".

Felizmente, a tragédia do Haiti também fez brotar o que a espécie humana tem de melhor: a solidariedade. Horas depois do dimensionamento da magnitude da tragédia, partiram ofertas de ajuda de todas as partes do planeta, da vizinha República Dominicana à distante Turquia, da pobre Bolívia a potências econômicas como os Estados Unidos e a Alemanha. Logo se somariam aos 9000 homens da força permanente da ONU no Haiti, comandada pelo Exército brasileiro, milhares de bombeiros e dezenas de equipes médicas de quase uma dezena de nacionalidades. As doações em dinheiro, alimentos e remédios superaram em volume e rapidez aquelas feitas em outros desastres naturais de larga escala. A Cruz Vermelha recebeu em uma semana o dobro das doações recolhidas durante todo o ano de 2009. Qualquer analista minimamante arguto e compromissado com a verdade, sabe que esses homens fizeram e estão fazendo bem mais do que "resgatar seus próprios mortos e feridos". Os EUA, por exemplo, tão logo souberam da tragédia enviaram vários navios da Guarda Costeira e um porta-aviões com 19 helicópteros, 51 leitos hospitalares e, três centros cirúrgicos e capacidade para tornar potável centenas de litros de água. Os americanos também enviaram uma força tarefa com mais de 2.200 fuzileiros e um navio hospital. Infelizmente, para os haitianos, o esforço humanitário promovido por outros países foi ofuscado pela inssensibilidade daqueles que tentaram e, ao que tudo indica, continuam tentando, fazer de uma catástrofe natural um fato político.

Como se não bastasse ter ignorado a ajuda internacional, o professor insinua que a culpa pela demora na ajuda é culpa das potências estrangeiras. Prestem atenção no trecho em que ele diz "nos perguntávamos do porquê da demora de disponibilizar comida e remédios já no aeroporto de Porto Príncipe para as centenas de milhares de pessoas que se aglomeravam nos campos de refugiados improvisados por todos os lados, a resposta era que não existiam canais locais capazes de serem mobilizados para a tarefa". De fato, não haviam canais locais capazes de serem mobilizados para essa tarefa. O gargálo logistíco era uma das maiores dificuldades para a ajuda humanitária que chegava ao país e só foi resolvido após a chegada dos militares americanos. Sob o comando dos EUA, o aeroporto de Porto Princípe que recebia uma média de 35 vôos por dia, passou a receber mais de 200. Ainda assim, existem aviões que esperam até 24 horas para pousar. Como se vê, há um motivo mais do que satisfatório para a demora na prestação de ajuda e, por alguma razão que nem Freud é capaz de explicar, o professor e os seus alunos preferiram ignorá-la.

Na segunda parte, que provavelmente foi escrita por Otávio Calegari Jorge, o texto se dedica a tratar dos "culpados" pelo terremoto. O professor e seu aluno partem da premissa cunhado por Eduardo Galeano de que os povos americanos são pobres, porque foram explorados. A tese de que o Haiti foi vítima da cobiça de potencias estrangeiras que conspiraram para que o país se tornasse aquilo que é hoje, beira o rídiculo. Alguém aí tem uma boa hipótese para explicar por que três países — nada menos do que EUA, França e Canadá — se uniriam para conspirar contra o Haiti? Será que se sentiam ameaçados pelo modelo haitiano? Estariam interessados nas riquezas do Haiti? Será que o professor e o seu aluno acreditam que se o Haiti ainda fosse governado por Jean Baptiste Aristide, os efeitos do terremoto teriam sido menos notáveis e dantescos? É evidente que um terremoto produz efeitos diferentes no Haiti e no Japão, mas não podemos ignorar a realidade do Haiti e o estado de pobreza em que vivem os seus cidadãos.

O professor e seu aluno seguem falando sobre o "demantelamento do estado haitiano". Francamente, não sei o que significa isso. Sob o regime de François Duvalier, mais conhecido como Papa Doc, o estado haitiano foi ao zenite. Com seus tontons macoutes, Papa Doc se infiltrou nos aspectos mais provincianos da vida pública, eliminou desafetos, instaurou um regime de terror e estatizou praticamente toda a economia. Essas medidas foram desastrosas para o Haiti, que ao final do governo, era a nação mais pobre das Américas e tinha um dos piores índices de desenvolvimento humano do mundo! As coisas não foram muito diferentes sob o regime de Jean-Claude Duvalier, o Baby Doc, que deu continuidade aos planos do seu pai de estatizar toda a economia submetendo-a aos seus desmandos. Aqui entre nós, se o Haiti tivésse sido vítima "de profissionais engravatados que aplicavam a mesma receita em qualquer lugar: desregulamentação, estado mínimo, livre comércio", hoje o país seria própsero e muito parecido com o Chile. Todo mundo sabe que a punjança economica do Chile não se deve ao governo de Salvador Allende, mas sim as reformas de Augusto Pinochet. O Milagre do Chile, expressão chunhada pelo economista americano Milton Friedman, permitiu um maior desenovolvimento economico em comparação ao restante dos países americanos. Mas como isso foi possível? Após chegar ao governo, em 73, Pinochet encontrou um país com uma inflação de 342% ao ano, reservas de caixa inexistentes e um PIB baixíssimo. Para sanar estes, e outros problemas, Pinochet delegou a responsabilidade pelas finanças do país a um grupo de jovens economistas recem formados que passaram a ser conhecidos como "Chicago Boys". Estes jovens traziam na bagagem ideias como economia livre de regulmentação estatal, capitalismo laisses faire, estado mínimo e câmbio flutuante. Em outras palavras: o que salvou o Chile da banca rota foi justamente aquilo que o autor, ou autores, do texto afirmam que levou o Haiti a falência. Não acredito que homens como o professor Thomaz e seu aluno sejam ignorantes neste tema; acredito sim, que eles adaptaram os fatos para que se ajustassem as suas premissas.

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