Houve um tempo em que eu acreditava que todos os problemas que afligiam a população se deviam à falta de democracia. No meu entender, não seria possível que uma parcela da população escolhesse viver em condições subumanas. Mas, então, uma desgraça se abateu sobre nós. Graças a uma visão míope, mas bem-intencionada, criamos a tese de que as favelas seriam urbanizáveis. No primeiro governo do Rio de Janeiro eleito depois do golpe militar, Darcy Ribeiro, chegou a dizer que: "Favela não é problema; é solução". Brizola, então, deitou e rolou. Em vez de trabalhar por moradias dignas, com subsídios do estado, como seria apropriado a um socialista, optou por uma solução de mercado. Mas de mercado selvagem, sem lei: levantou a proibição que impedia a construção em alvenaria nas favelas, ou, em outras palavras, permitiu que o que era provisório se tornasse permanente. O que os pobres fizeram? Gastaram a poupança deles, que poderia ter sido canalizada para um programa subsidiado de casas populares, em cimento e tijolo para continuar a morar em locais inabitáveis. Graças a essa mentalidade tacanha, até hoje tem gente achando que pode urbanizar uma favela... Já estão até levando teatros e bibliotecas para dentro delas com o intuito de exibir peças como Barella e Estação Carandiru! Percebe-se que as esquerdas não querem apenas civilizar os botocudos, eles também querem doutriná-los. Afinal, de Moreira Franco à Sérgio Cabral, todos, sem exceção, tentaram transformar água em vinho.
Ontem a Rede TV exibiu uma reprise da entrevista que o presidente Lula concedeu ao programa "É Notícia". Para variar, Lula repetiu - aos borbotões - que "nunca antes na história desse país se viu isso e aquilo outro". É assim mesmo! Estou convencido de que o nosso presidente sofre de duas moléstias relativamente graves: a primeira é a Síndrome do Marco Zero, que o leva a crer que até mesmo o Pátio do Colégio, em São Paulo, foi construido por ele ; a segunda é o complexo de Luíz XIV, pois assim como o Rei Sol dos franceses, Lula acha que ele é o Estado em sua forma humana. Mas o que o Lula tem a ver com as favelas? O presidente passou praticamente um bloco inteiro falando sobre os seus programas sociais, entre eles o tal do Favela Bairro. Ora, não sejamos estúpidos! Um programa como aquele só pode funcionar em comunidades planas, grandes ou pequenas, onde o arruamento é possível, onde o acesso fácil pode ser obtido. Para um ambiente como os morros cariocas, que nem Levi-Strauss foi capaz de explicar, precisamos de algo muito, mas muito mais sofisticado.
Agora mesmo, Cabral, Lula e Paes vão gastar uns poucos milhões para continuar tentando o impossível: tornar dignas favelas como a Rocinha, o Cantagalo, o Alemão. Tudo errado. O dinheiro é pouco se comparado a outras obras. Vão gastar R$ 175 milhões na Rocinha e gastaram R$ 408 milhões no Engenhão, esta é a escala de prioridades de nossos governantes. E como desgraça pouca é bobagem, pensem na Cidade da Música, de Cesar Maia, que consumiu R$ 550 milhões e ainda está no esqueleto. E a coisa não para por aí! Recentemente o governo do Estado declarou que pretende expandir o metrô até a Gávea, para que algum dia, ele se encontre com a linha que vai até a Barra. A obra custará R$ 3 bi e beneficiará 800 mil pessoas. Será que isso é "a" prioridade? Óbvio que não! Só para vocês terem uma idéia, é possível transformar os trens de subúrbio em metrô de superfície para atender a 3 milhões de pessoas a um custo de R$ 2 bilhões. Claro, se tivesse havido algum senso de prioridade, o governo não teria de escolher entre essas duas obras igalmente prioritárias. Como? Os R$ 958 milhões do Engenhão e da Cidade da Música teriam sido suficientes para a compra de 60 trens de última geração com ar-condicionado.
Como o Banco Mundial já aprovou um financiamento de R$ 506 milhões para a compra de 30 trens, ficariam faltando apenas 68 composições para que as cinco linhas da rede ferroviária do subúrbio (210 quilômetros) fossem completamente transformadas em metrô de superfície. Quando se compara o benefício que o Engenhão e a Cidade da Música trouxeram à cidade com o que seria proporcionado pelo metrô de superfície, dá uma angústia danada. Não é preciso ser um especialista para constatar que o impacto que uma expansão como essa teria sobre as camadas mais pobres da população. Se os subúrbios tivessem um meio de transporte mais moderno, seriam uma área mais atraente para se morar e ficariam mais próximos do Centro e da Zona Sul (estou falando de tempo, claro). Isso viabilizaria a construção de bairros populares decentes e habitáveis ao longo das linhas e pouparia milhões em projetos de restruturação que já estão fadados ao fracasso antes mesmo de saírem da prancheta.
Quando os subúrbios estivessem a poucos minutos das áreas ricas do Rio de Janeiro (como ocorre nas grandes capitais do mundo), a remoção de favelas inviáveis deixaria de ser um palavrão: morros inabitáveis, como Dona Marta, Pavão, Pavãozinho, Cantagalo, Vidigal, parte da Rocinha, parte do Alemão, para citar apenas alguns poucos, poderiam ter as suas populações realocadas em bairros decentes, com transporte bom e barato. Trocariam uma casa dependurada numa ribanceira, cercada por becos impossíveis de ser urbanizados, por bairros populares decentes e de fácil acesso. Parece sonho? Olhando para o passado, parece mesmo fantasia. Mas olhando para o futuro, ainda dá para sonhar. Por exemplo, eu dava como certo que ninguém mais no Rio queria ouvir falar em remoção. Mas quando li, na coluna do Ancelmo Gois, que "remoção foi satanizada, mas não deveria", eu percebi que alguma coisa pode estar mudando. Enfim, o Brasil não se tornou o país do futuro como profetizou o saudoso Stefan Zweig, mas ainda podemos mudar esse quadro. Com um pouco de sorte e boa-vontade, podemos fazer dessa cidade um lugar onde não haverá deslizamentos e alagamentos. Um lugar onde as famílias possam viver condignamentes, livres de transtornos como os que foram causados pelas chuvas do final do ano. Infelizmente, meus caros, isso só será possível quando obras como estádios de futebol e pontos de cultura absolutamente dispensáveis deixarem de consumir a maior parte dos recursos da União.
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