16 setembro 2009

O PEC do Itagiba

Os deputados devem votar ainda hoje uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que acaba com o foro privilegiado nos julgamentos de autoridades. A proposta é polêmica e encontra resistência entre parlamentares que temem perder o privilégio. Os líderes de governo e oposição aceitaram analisar a matéria, mas não fecharam acordo.

Pela proposta, o presidente da República, o vice-presidente, deputados federais, senadores, ministros de Estado e ministros de tribunais superiores deixam de ser julgados pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

No caso de autoridades, o texto estabelece que o STF terá a atribuição de aceitar ou não a denúncia, em casos de crimes comuns e de responsabilidade. Se a PEC for aprovada, eles serão julgados pela Justiça comum.

O deputado Marcelo Itagiba (PMDB-RJ), autor da PEC, afirmou que a ideia de acabar com o foro privilegiado surgiu para acompanhar o avanço da sociedade em relação aos princípios igualdade e uma de suas funções seria combater a corrupção.

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O Reinaldo Azevedo já dedicou algumas linhas a este assunto, mas o tema e amplo e merece mais alguns minutos da nossa atenção.

Um dos princípios fundamentais de nossa ordem jurídica é o da igualdade, consagrado no art. 5º da Constituição Federal. Em decorrência, todos seriam obrigados a respeitar as leis, e todos deveriam ser julgados pelos mesmos juízes, sem quaisquer privilégios.

Mas existem exceções a esse princípio e uma delas é a norma que estabelece foro especial para o julgamento de determinadas autoridades. Esta norma se justifica pela necessidade de proteger o exercício da função ou do mandato e não constitui um privilégio pessoal para o detentor do mandato.

Não se trata, nesse caso, de foro privilegiado, mas de foro especial, ou foro por prerrogativa de função. Quem está sendo resguardado, portanto, é a própria ordem jurídica, ou o próprio eleitorado, porque esse foro especial decorre da função que aquelas autoridades exercem. É a função pública, é o mandato que lhes foi conferido pelo povo, que está sendo protegido por essa norma. O privilégio seria um benefício à pessoa, e isso a Constituição proíbe, ao passo que a prerrogativa se justifica pela necessidade de proteger a função que essa pessoa exerce.

Mas se o foro especial se destina a proteger o mandato, depois que este termina não existe mais qualquer justificativa para sua manutenção, porque nesse caso ele se transformaria em um privilégio pessoal do ex-governante, correto? Sim, está correto!

Recentemente, por iniciativa do governo, esteve em debate no Congresso Nacional uma proposta destinada a ampliar esse foro especial, estendendo sua competência ao julgamento das infrações cometidas antes, durante e depois do mandato (um absurdo, é claro). Esse seria, realmente, o foro privilegiado, o privilégio odioso, contrário ao princípio fundamental da igualdade.

Mas enquanto o Executivo fazia essa tentativa de criar o foro privilegiado, o Supremo Tribunal Federal caminhava em direção oposta, revogando o entendimento de sua Súmula 394, de 03.04.64, segundo a qual "Cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício".

Desde 1964, sob a vigência dos Atos Institucionais, o Supremo Tribunal Federal entendia que, se o crime tivesse sido praticado durante o desempenho do cargo, função ou mandato, estaria garantido o foro especial, para aquela autoridade, mesmo após sua cassação, renúncia, ou o término do mandato.

Pela nova interpretação, contudo, aquelas autoridades que não mais estão no exercício de seus cargos, deverão ser julgadas pela primeira instância, isto é, pelos juízes monocráticos. Caberá assim aos juízes federais processar e julgar ex-deputados, ex-senadores, ex-ministros ou até mesmo ex-dirigentes de autarquias ou empresas públicas, na área federal. Quanto às ex-autoridades municipais ou estaduais, evidentemente, o julgamento competirá aos juízes de direito.

O Relator, Ministro Sidney Sanches, disse com muita propriedade em seu voto, na decisão que levou à revogação da Súmula 394, que "a prerrogativa de foro visa a garantir o exercício do cargo ou do mandato, e não a proteger quem o exerce, e menos ainda quem deixa de exercê-lo, porque as prerrogativas de foro, pelo privilégio que, de certa forma, conferem, não devem ser interpretadas ampliativamente, numa Constituição que pretende tratar igualmente os cidadãos comuns, como são, também, os ex-exercentes de tais cargos ou mandatos".

Essa é, evidentemente, a interpretação correta das normas constitucionais. A Justiça deve ser igual para todos, e todos devem ser julgados pelos mesmos juízes, salvo nas hipóteses expressamente previstas na Constituição, e exclusivamente decorrentes das funções exercidas.

Creio que o propósito do foro privilegiado ou foro por prerrogativa da função já ficou claro a todos. Portanto, podemos passar a outro ponto: e o que o projeto do deputado Marcelo Itagiba tem a ver com isso?

Vocês já imaginaram o que aconteceria se os nossos governantes, famosos pela corrupção e pelo fisiologismo político, se sentissem acuados pelo promotor público de Tambará do Oeste? Seria o fim da autonomia política e a volta ao período em que as relações democráticas eram marcadas pelo clientelismo. Alguém aí consegue conceber um país em que o líder máximo da nação pode ser autuado pelo juiz de uma comarca qualquer do interior? O deputado Itagiba pode!

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