11 novembro 2009

O muro da vergonha

Há 20 anos, no dia 9 de novembro de 1989, uma multidão gritava em uníssono as palavras que poriam fim a Guerra : "Abram! Abram!". Eram os alemães do lado oriental, exigindo o direito de atravessar para o lado ocidental. O guarda responsável da fronteira finalmente cedeu, e ordenou: “Abram tudo”. Os portões escancararam-se. Era o fim do Muro de Berlim, ícone do regime socialista que vinha mantendo o próprio povo em cárcere desde 1961.

O muro foi construído para acabar com o êxodo dos alemães do lado oriental para o ocidente. O governo comunista justificou a decisão de construí-lo dizendo que esta era a única forma de acabar com "o contrabando de divisas e a atividade dos espiões". Para se conseguir atravessar de um lado a outro, era preciso passar por 18 operações de controle alfandegário, incluindo a revista das malas e bagagem, da carteira de dinheiro, do carro, além de um estudo minucioso do passaporte – tudo sob a mira de um guarda com o dedo no gatilho da metralhadora. De tempos em tempos, o governo comunista fechava a única porta entre os dois territórios, juntamente com todas as ferrovias, rodovias e linhas fluviais que ligavam as duas capitais.

Nos 28 anos de existência do Muro de Berlim, 809 pessoas foram mortas enquanto tentavam transpô-lo para fugir do comunismo. Em 1984, o governo comunista chegou, inclusive, a erguer uma segunda muralha na capital alemã. Mas nem isso conseguia impedir as pessoas de arriscarem a vida pela liberdade. Documentos dos arquivos da polícia secreta da Alemanha comunista, a Stasi, revelaram, em 2001, que mais de 75 000 alemães foram presos tentando escapar entre 1961 e 1989. Dos mortos, 250 foram baleados junto ao muro, 370 ao longo do que então era a fronteira entre as duas Alemanhas e 189 na região do Mar Báltico.

Diante de um cenário como este, é óbvio que a queda do Muro de Berlim representou uma vitória, não apenas do capitalismo como também de todo o mundo civilizado. Ela é digna, portanto, de todas as celebrações pelo que significou, mas pode contribuir um bocado, caso não se tome o devido cuidado, para obscurecer o presente e criar uma névoa que nos impede de ver o futuro com mais clareza. Explico-me.

A queda do muro e o fim da União Soviética jogaram luzes sobre o horror e, em boa medida, o surrealismo socialista. Tudo aquilo que a propaganda anticomunista mais vagabunda plantou sobre o socialismo real — e é, felizmente, o único tipo de socialismo que existe — era pura falta de imaginação! A realidade era muito pior. E a antiga Alemanha Oriental, onde o regime adquiriu o, digamos assim, rigor germânico, era a prova da inviabilidade do modelo. Afinal, convenham: quanto mais disciplinado for o socialismo, menos ele funciona, não é mesmo? Só para citar um exemplo ideológico-escatológico: escolas eram dotadas de latrinas coletivas, um imenso galpão, onde os estudantes, na hora certa, tinham que defecar, todos ao mesmo tempo. Era a chamada digestão coletiva. O socialismo é assim: começa propondo a salvação da humanidade e termina numa grande… Bem, você sabem.

Os que ainda se dizem socialistas têm razão em dizer que o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim marcam a morte do socialismo real, restando apenas alguns mortos-vivos como Cuba e Coréia do Norte. É verdade! Só o socialismo real morreu. O socialismo ideal — infelizmente — continua vivo na mentalidade daqueles que ainda deliram com a engenharia social, que seria capaz de produzir, a partir da ação do estado, o tal "bem comum" a despeito, muitas vezes, da vontade dos próprios homens. Os socialistas idealistas têm certeza de que a única coisa que afasta os homens da felicidade coletiva são seus maus sentimentos, que devem ser exorcizados pela luta política, a ser conduzida por um guia ou por um partido. Ainda voltarei a falar deste assunto em um texto sobre o tão propalado “bem comum” dos socialistas.

O Muro caiu sobre a cabeça dos "planejadores" de futuro e engenheiros de gente. Mas, se olhamos a realidade aqui e alhures, tem-se, muitas vezes, a impressão de que ocorreu o contrário. Não há dúvida de que a economia socialista entrou em colapso, mas é inegável que foi a pressão por democracia e por liberdades públicas que fez dissolver o modelo. Essa pauta, no entanto, voltou a ficar acanhada nos dias que correm. O debate sobre a democracia, vital para a morte do socialismo real, desapareceu sob a imponência do crescimento chinês, por exemplo. O mundo, inclusive o Ocidente ainda democrático, olha para aquela tirania com os olhos entre tímidos e gananciosos do realismo político. "Tímidos" porque parecemos ter abraçado a tese de que a democracia vai bem para nós, mas eles lá podem ter descoberto a sua própria maneira de fazer as coisas. E "gananciosos" porque, afinal de contas, o capitalismo à moda chinesa, que se chama "socialismo" por lá, é uma fonte e tanto de lucro. E, querem alguns, livrou o mundo do caos — e a China cresceu, ela própria, na crise porque exerce a economia de mercado sem obedecer as suas regras: do comezinho desrespeito ao direito de patente ao dumping mais descarado. Vinte anos depois da queda do muro, a democracia universalista, que não deixou pedra sobre pedra por lá, cedeu a esse realismo tosco.

Ao longo de vinte anos, o "socialismo ideal" foi se reciclando e se insinuando nos espaços decisórios das sociedades de mercado, tornado influente a sua pauta e substituindo o valor supremo da liberdade — que foi a força que realmente derrubou o muro — pelos chamados "direitos coletivos" (seja lá o que esse troço signifique), que podem, a depender do caso, sufocar e esmagar os direitos individuais.

Na Europa e nos Estados Unidos, onde, por ora ao menos, as instituições são menos permeáveis à ação de aventureiros, a pressão dos "socialistas idealistas", dos vendedores do sonho coletivista, se expressa no universo da cultura e, eventualmente, das políticas educacionais e sociais. O Ocidente aprendeu a odiar a si mesmo, vendo-se como matriz de todos os desatinos. Certa cultura acadêmica pretende, por exemplo, que foi o Ocidente que inventou o terrorismo islâmico. Alguns celerados se juntariam com o intuito de destruir os valores ocidentais porque não saberíamos compreendê-los e ver o mundo segundo a sua ótica… Não é mesmo uma graça?

Na América Latina — e o Brasil não está imune a este mal —, além da contaminação da esfera cultural, há também a pressão sobre as instituições, exercida por minorias militantes (e o "idealismo socialista" ainda é o norte) que pretendem impor a sua vontade em nome do bem coletivo, do chamado "bem comum". Tentam jogar no lixo os princípios liberais, que respondem pelo bom progresso da humanidade, em nome de sua pauta de particularismos disfarçados de universalismo. Para descer ao chão: os Kirchner, na Argentina, incentivam bandidos de um sindicato a impedir a livre circulação de jornais. No Brasil, Lula pretende criar um órgão paralelo ao TCU porque não aceita que seu governo seja submetido às regras da vigilância e transparência — ao menos as possíveis. Chávez, por óbvio, é o melhor exemplo de como usar instrumentos da democracia para solapá-la. Estão tentando ressuscitar na América Latina o que foi devidamente enterrado no Leste Europeu. A diferença é que agora o socialismo real aparece travestido de “socialismo do século XXI”, mas isso é apenas um truque de retórica. O que eles, os socialistas, querem é seguir os mesmos passos fracassados do passado. Se olharmos com a devida atenção, veremos que pouca coisa mudou nesse período. Ao invés das prédicas e discursos do partido bolchevique (com letra minúscula mesmo), surgiu o discurso hipócrita da "revolução bolivariana", com que se pretende mascarar a ditadura, dando-lhe uma roupagem democrática. Trata-se do uso da "democracia" para destruir as nossas liberdades individuais mais básicas.

Vinte anos depois da queda do Muro de Berlim — e, na verdade, do fim da União Soviética —, saudemos, sim, a exposição da verdade sobre aquele modelo. O homem NÃO cabe naquela engenharia. Mas também não vamos nos dar por satisfeitos. Não é verdade que o regime de liberdades individuais e que a democracia política encontraram ali a sua vitória definitiva.

Ainda que sob nova roupagem, a ameaça à liberdade está mais presente do que nunca. O antigo e suposto universalismo socialista — "construir o novo homem" — manifesta-se, hoje em dia, nos particularismos influentes que, deixados à vontade, corroem o sistema que garante as liberdades individuais. E pouco importa qual seja a pauta dessa gente: os pobres, o "povo" (ainda ele), as ditas minorias raciais, a ecologia…

Viva o fim do muro, que iluminou o passado! Agora é preciso que o regime democrático recupere a iniciativa para demonstrar que é o único futuro que vale a pena ser vivido. No momento, aqui e alhures, ele está em baixa.

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