11 dezembro 2009

A moral das esquerdas

Embora tudo o que esteja em curso seja uma porcaria e indique um mosaico de misérias morais das mais diferentes origens, confesso que, intelectualmente, momentos assim são importantes porque nos permitem recuperar alguns princípios. Mas por que estou dizendo isso? Nos últimos dias me deparei com alguns canalhas que não se conformam com a defesa que fiz da expulsão de José Roberto Arruda no Instituto Millenium. Juízes de minhas vontades secretas, dizem que o faço apenas para afetar uma independência que eu não tenho. Como não sou de esquerda, não posso pedir a punição imediata de desmandos praticados por um sujeito de "direita". Julgam-me pelos mesmos critérios com os quais medem a si mesmos.

Quem não se lembra de Marilena Chaui e Wanderley Guilherme dos Santos, "intelectuais do PT" — o que é um oximoro clamoroso —, alegando que a investigação do mensalão petista era uma tentativa de golpe. Em uma entrevista recente, Lula reforçou a tese do golpe, negou a existência do crime e ainda sugeriu que Marcos Valério foi plantado no PT pelo PSDB só para desestabilizar seu governo.

Com um líder tão controvertido quanto este, é natural que eles se sintam confusos diante da minha defesa do impeachment de Arruda. Eles, os petistas, costumam defender os seus bandidos com uma desenvoltura ímpar e não compreendem que aqueles a quem consideram adversários não defendam os "deles". Não conseguem enxergar a política senão segundo a ótica do crime. E acreditam que os supostos crimes dos oponentes justificam as suas próprias trapaças. SÃO AMORAIS E HIPÓCRITAS! É NÃO É DE HOJE QUE EU VENHO DIZENDO ISSO.

Quando era mais jovem, li "Moral e Revolução", de por Leon Trotski, e fiquei admirado com a forma como a moral era reduzida a sua dimensão prática. Enfim compreendi que os movimentos e intelectuais de esquerda SÓ conseguem conceber a moral segundo a perspectiva aplicada, isto é, da moral revolucionária. Se eu tivésse me dado conta do óbvio contindo nessa afirmação, teria me poupado de horas e horas de discussão com estudantes de inspiração marxista que acreditam piamente que os fins justificam quaisquer meios.

A partir daí, fui assaltado por uma nova dúvida: por que será que os trotkistas tem tamanha ojeriza dos stalinistas? Está claro que Stálin, o grande inimigo de Trotsky, operava com os mesmos critérios, com a diferença de que havia sido mais hábil na aplicação do amoralismo. EM SUMA: TROTSKY, PERSEGUIDO POR STÁLIN (ATÉ SER ASSASSINADO EM 1940), ERA UMA VÍTIMA PRÁTICA DE SUA PRÓPRIA TEORIA. E ambos haviam bebido na mesma fonte: Lênin — o pai primitivo de todos os amorais contemporâneos.

Mas por que estou falando sobre isso? Bom, tenho um verdadeiro pavor das pessoas que se assenhoram (a variante "assenhoreiam" é horrível) da história e passam a comandá-la em nome de qualquer uma dessas ilusões que se vendem por aí: bem comum, bem da humanidade, novo homem, nova civilização. Antigamente chamavam esse tipo de coisa de "socialismo", "luta de classes" e etc, hoje chamam de qualquer coisa, desde que convenha ao partido e seus membros. Não que o partido , que neste caso é o PT, sonhe com um socialismo como aquele que houve no século 20. É claro que não! São petistas, mas não são burros. A única coisa que conservam da visão bolchevista é a idéia do partido autoritário, centralizador, gestor do futuro. Infelizmente, para tornar este sonho possível, trouxeram consigo aquela velha moral enviesada que só atende aos seus próprios propósitos. Enfim, essa coisa de criar um moral para si e outra para "eles", seja lá quem "eles" forem, é coisa de gente canalha e mau-caráter.

Quando Lula afirmou que, no Brasil, Cristo faria um acordo com Judas para governar, não estava apenas expressando uma estupidez religiosa — já que Judas não simboliza o "outro" o "adversário", mas sim a traição - ele também estava expressando a sua filiação a um pensamento político, malgrado sua ignorância exemplar, que já tem história. Leiam um trecho que transcrevo de Moral e Revolução. Neste ponto, Trotsky está combatendo, calculem!, um grupo minoritário de esquerda que havia censurado o uso da mentira e da violência como armas políticas:

Mas a mentira e a violência por acaso não são coisas condenáveis "em si mesmas"? Por certo, como é condenável a sociedade dividida em classes que a engendra. A sociedade sem antagonismos sociais será, evidentemente, sem mentira e sem violência. Mas não é possível lançar um ponte para senão com métodos violentos. A própria revolução é o produto da sociedade dividida em classes, da qual ela leva necessariamente a marca. Do ponto de vista das "verdades eternas" a revolução é naturalmente "imoral". Mas isto significa apenas que a moral idealista é contra-revolucionária, isto é, encontra-se a serviço dos exploradores.

Está claro, não? A síntese poderia ser esta: se as classes sociais existem, então tudo nos (aos socialistas) é permitido. Como se nota acima, qualquer brutalidade que os revolucionários viessem a cometer seria responsabilidade dos fatores antecedentes que levaram à revolução. Ora, não preciso conduzir nenhum de vocês pelo braço, como Virgílio fez com Dante nos círculos do inferno, para que se reconheça ali a moral dos petistas, que os levou a defender o mensalão e os mensaleiros. Eles tinham um objetivo, e o que fizeram de detestável para alcançá-lo deveria ser creditado na conta do inimigo. Num texto eivado de horrores, destaco mais um:

O meio não pode ser justificado senão pelo fim. Mas também o fim precisa de justificação. Do ponto de vista do marxismo, que exprime os interesses históricos do proletariado, o fim está justificado se levar ao reforço do poder do homem sobre a natureza e à supressão do poder do homem sobre o homem.

Tentando ser espertinho ao jogar com a máxima maquiavélica, Trotsky apenas lhe acrescenta mais horror. A pergunta desde logo óbvia é esta: e quem julga se os meios A ou B conduziram mesmo àquele fim edificante. Stálin não teve dúvida: “Deixem que eu julgo!” E mandou meter uma picareta na cabeça de Trotsky. ELE FOI ASSASSINADO PELA REVOLUCIONÁRIA MORAL BOLCHEVIQUE, NÃO PELA IDEALISTA MORAL BURGUESA.

Mas, então, tudo é permitido àquele que se julga na vanguarda da história e do processo revolucionário? Deixemos que Trotsky responda:


Isto significa então que, para atingir este fim, tudo é permitido? - pergunta sarcásticamente o filisteu, demonstrando que não entendeu nada. É permitido, responderemos, tudo aquilo que leve realmente a libertação dos homens. Já que este fim não pode ser atingido senão pela via revolucionária e a moral emancipadora do proletariado tem necessariamente um caráter revolucionário. Como aos dogmas da religão, esta moral se opõe a todos os fetiches do idealismo, gerdames filosoficos da classe dominante. Ela deduz as normas de conduta das leis de desenvolvimento social, isto é, antes de tudo, da luta de classes, que é a lei das leis.

Está claro? Qualquer que seja o horror, alegue tratar-se de uma moral emancipadora, libertadora, de caráter revolucionário. E o próprio Trotsky pergunta, como se fosse dúvida de um moralista idiota qualquer: "São permitidos todos os meios? A mentira, a falsificação, a traição, o assassinato"? E Trotsky responde:

São admissíveis e obrigatórios apenas os meios que aumentam a coesão do proletariado, inflamam sua consciência com o um ódio inextinguivel a toda forma de opresão, ensinam-lhe a desprezar a moral oficial e seus arautos democráticos, dão-lhe plena consciência de sua missão histórica e aumentam sua coragem e abnegação. Donde se conclui afinal que nem todos os meios são válidos.
A conclusão do parágrafo é própria de um grande vigarista, uma vez que os únicos meios não-válidos seriam aqueles que não conduzem ao fim pretendido. Mas a indagação sempre se refere, ora bolas, ao fim. Logo, para Trotsky — e para as esquerdas de modo geral — TODOS OS MEIOS SÃO VÁLIDOS: a mentira, a falsificação, a traição, o assassinato...

Há essa altura, já está claro que existe a moral "deles", das esquerdas, e a "nossa" (das pessoas que não se julgam acima do bem e do mal). Eles, porque se julgam líderes de um "projeto", de um amanhã sorridente — ou que nome tenha assumido a vigarice revolucionária — acreditam que todos os meios lhes são lícitos, permitidos, convenientes. Eu, pobrezinho, já tenho uma moral mais "burguesa", sabem?, mais "idealista", que advoga a universalidade de certos direitos e do bem de certos procedimentos. Não acho, por exemplo, que se deva condescender com a mentira, com a falsificação, com a traição, com o assassinato... E nem com o mensalão, seja ele do PT ou do DEM. Quando dona Marilena Chaui e sua vassoura teórica inventaram que denunciar o mensalão do PT era golpe, estava apenas recorrendo à moral torta de que nos fala Trotsky, aquela segundo a qual, se o "objetivo é revolucionário" (e os petistas acreditam mesmo que estão fazendo uma revolução), então todos os meios são válidos, porque se tornam também revolucionários, já que foram imantados por aqueles propósitos grandiosos, cheios de amanhãs sorridentes. Eu, com a minha moral burguesa, acho que mensalão de Arruda é só um caso de polícia.

Em suma, o fato de aqueles petistas não terem vergonha na cara não me convida a perder a minha vergonha também. Que eles defendam seus criminosos! Não tenho criminosos a defender!

Nenhum comentário: