21 dezembro 2009

Como evitar a barbárie

Todos sabem que o império da lei visa evitar o estado de barbárie. Dita assim, como um eco do que já afirmaram muitos filósofos ao longo da História, a frase parece uma obviedade. Infelizmente, não é bem assi no Brasil e o caso do garoto Sean é um infeliz exemplo disso.

Eu não tenho a intenção de julgar quem deve ter o direito sobre a guarda do menino, pois não tenho propriedade para tanto. Quero apenas fazer uma breve digressão, pois tenho certeza de que os dois lados têm os seus motivos, e mais do que isso, têm experimentado uma tremenda angústia com o que está acontecendo. O drama do menino Sean ganhou uma proporção tão grande que há essa altura, nenhum veredicto será totalmente justo. É, antes de tudo, uma situação que beira a barbárie: ou arrancamos o garoto da família com quem ele viveu nos últimos quatro anos ou negamos ao pai biológico o direito de passar a vida ao lado do filho. E é aí que entra o meu ponto de vista: se a lei tivesse sido respeitada na origem, nada disso estaria acontecendo agora.

Para impedir que casos assim ocorram, em 1980 foi concluída a Convenção de Haia, da qual o Brasil e os EUA são signatários. O objetivo da Convenção é "proteger a criança, no plano internacional, dos efeitos prejudiciais resultantes de mudança de domicílio ou de retenção ilícitas e estabelecer procedimentos que garantam o retorno imediato da criança ao Estado de sua residência habitual, bem como assegurar a proteção do direito de visita".

Trocando em miúdos, a convenção se aplica aos casos em que uma criança é levada para outro país, sem a concordância expressa daquele ou daqueles que têm a sua guarda. Note que a convenção não fala em nacionalidade, mas em país onde fica a sua "residência habitual". Imagine que um menino nasça no Brasil, de pai americano e mãe brasileira e vá morar com eles na Alemanha, onde permanece por quatro anos, findos os quais, sem a autorização do pai, é levado pela mãe para o Brasil. Num caso assim, pouco importa a nacionalidade da criança, do pai ou da mãe: a Convenção determina que ela seja imediatamente devolvida à Alemanha, porque é ali a sua residência habitual. Mais do que isso, a Convenção não determina que o menino seja devolvido ao pai, mas que ele volte à Alemanha, inclusive na companhia da mãe se assim ela desejar, e que ali se instaure um processo civil para decidir com quem a criança ficará morando e o direito de visita da parte daquele que perder a sua guarda. Simples, não acham?

Por que a convenção age assim? Porque o intuito do documento é benefíciar a criança e não os seus pais. Quanto menos tempo uma criança passar fora de seu ambiente habitual, menos danos serão causados no relacionamento dela com o pai ou a mãe de cuja companhia ela foi afastada.

A convenção visa a manter vivos os laços entre a criança e os seus pais, e deixa para a Justiça local decidir se é o pai ou a mãe o mais bem equipado para viver com ela sob o mesmo teto.

Evitar danos nesse contato é tão importante que a convenção estabelece um prazo de seis semanas para que a criança seja devolvida. Independentemente das razões da mãe de Sean, se a Justiça fluminense tivesse sido fiel ao espírito da lei que mencionei do início desse texto, mãe e filho teriam sido mandados de volta a Nova Jersey, onde viviam há quatro anos. A mãe não teria que se separar do filho e os dois nem sequer teriam de voltar a viver ao lado do pai. Teriam apenas de estar em Nova Jersey, onde um processo definiria a guarda, o direito de visita e o local de residência da criança, que poderia ser inclusive o Brasil. Fossem quais fossem as razões da mãe de Sean, elas deveriam ser apresentadas, com provas, para a Justiça americana, que julgaria o caso, não porque os Estados Unidos sejam melhores do que o Brasil, mas porque é assim que determina a lei internacional. Se a Convenção de Haia tivesse sido respeitada lá atrás, mesmo que o pai tivesse perdido a guarda de Sean, seu relacionamento com ele teria sido preservado.

A convenção é muito clara em seu artigo 12. Diz que se houver decorrido menos de um ano entre a ida da criança, sem autorização, para outro país e a instauração de um processo legal pedindo a sua volta, o retorno deve ser imediato. Este era o caso de Sean, mas a Justiça brasileira reteve o menino no Brasil diversas vezes. O pior é que os nossos magistrados tem agido da mesma forma em casos semelhantes a este! Baseados na letra "b" do artigo 13 da Convenção, que diz que a autoridade judicial não é obrigada a ordenar o retorno imediato da criança se ficar provado que existe "um risco grave de a criança ficar sujeita a perigos de ordem física ou psíquica, ou, de qualquer outro modo, ficar numa situação intolerável", os nossos juízes agem a revelia da lei, desrespeitando um princípio básico de convivencia entre os povos.

Na última semana, ouvi dezenas de especialistas no assunto discursarem sobre o caso e todos foram unanimes em dizer que a alínea "b", do artigo 13 da Convenção, deve ser interpretada como uma exceção usada apenas em situações extremas, em que o risco tenha sido cabalmente comprovado. Mas, como de costume, no Brasil a exceção virou regra e a regra virou exceção.

Na minha opinião, o risco a qual a Convenção se refere existe quando a criança é mantida fora de alcance por tempo longo o suficiente a ponto de causar danos aos laços afetivos que a une a pai ou mãe. Não precisa ser um observador muito arguto para constatar que é exatamente isso que está sendo feito no Caso Sean! Devemos nos perguntar se o suposto risco de dano psíquico alegado quatro anos atrás pela família materna do menino é maior do que o dano que ele está sofrendo hoje? Lá atrás, Sean era uma criança adaptada à mãe, ao pai e a Nova Jersey, onde morava havia quatro anos. Ele frequentava uma escola regular e tinha amigos da mesma idade. Tinha vida comunitária e todas as outras coisas que uma criança de 4 anos costuma ter. Acho que se houvesem ressalvas em relação ao pai do garoto, a justiça americana saberia dizer. Mas não... A exemplo do que está ocorrendo no caso Battisti, a justiça brasileira arrogou para si o papel de revisora da Corte de outro país. Imbuído do espiríto que os nosso magistrados são mais capazes, mais instruidos e talvez até mais bonitos que os de fora, o Itamaraty decidiu que tínhamos que ficar com o garoto, mesmo que isso violasse flagramente uma Convenção que ele próprio, o Itamaraty, havia assinado anos antes.

O resultado dessa piada de mal gosto está aí! Tenho certeza que nenhum de nós gostaria de estar na pele do juiz brasileiro que terá de decidir o caso, causando, inevitavelmente, sofrimento inenarrável a família brasileira, a família americana e, sobretudo, a Sean.

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